sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

A guerra e as palavras

Rei George VI durante o pronunciamento da declaração de guerra a Alemanha Nazista, em 3 de setembro de 1939.
Por Felipe Nogueira Monteiro
                O poder das palavras tem a mesma capacidade destrutiva de uma rajada de metralhadora, de uma bomba, ou até maior do que todas juntas. E não se trata de um mero devaneio filosófico, isso é real, com exemplos clássicos na História. Durante a Segunda Guerra Mundial, a Inglaterra principalmente vivia sob um dilema: como um rei gago e tímido pode derrotar um exímio e talentoso orador, líder de um país que conquista boa parte da Europa?
Rei George VI
                A Inglaterra da virada do século XIX ao século XX sofre grandes transformações. O país está terminando sua era vitoriana, de grande prosperidade em todo o Império Britânico, gozando de influencia e poder mundial. Na era de Eduardo VII, o país passa a ser protagonista na Primeira Guerra Mundial, ao organizar a Entente Cordiale, em 1914. Mas, com a hegemonia contestada desde a Primeira Guerra Mundial, a Inglaterra passa pela sucessão ao trono real com esse desafio. E começa mal: em 1936, George V falece e Eduardo VIII renuncia ao trono (determinado a desposar uma americana divorciada duas vezes e com maridos vivos), restando ao terceiro na sucessão da dinastia Windsor: George VI. De inicio, sua maior preocupação era não chegar a assumir o trono, e sabia que sua renuncia implicaria no aumento da desconfiança sobre a capacidade de governar do rei e da própria instituição da família real inglesa.

“Nasce daí uma questão: se é melhor ser amado que temido ou o contrário. A resposta é de que seria necessário ser uma coisa e outra; mas, como é difícil reuni-las, em tendo que faltar uma das duas é muito mais seguro ser temido do que ser amado. Isso porque dos homens pode-se dizer, geralmente, que são ingratos, volúveis, simuladores, tementes do perigo, ambiciosos de ganho; e enquanto lhes fizerem bem, são todos teus,[...]; mas o temor é mantido pelo receio de castigo que jamais se abandona.” (MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe)

                Através do pensamento acima, segundo uma leitura literal de Maquiavel, em O Príncipe, se espera que um rei seja temido para que seja respeitado, nem que para isso tome meios cruéis, afinal, o fim justifica os meios, na leitura maquiavélica para manutenção do poder. Isso foi seguido ao longo de séculos e teve resultados benéficos aos que leram. Mas toda regra, tem sua exceção. E vemos isso com o rei inglês George VI.
                Nascido em 1895, príncipe Albert (futuro George VI) cresceu afastado dos pais, afetando seu lado emocional, além de ser canhoto, mas tendo obrigatoriamente escrever com a mão direita, desenvolvendo assim, uma gagueira nervosa, que se agravou com o tempo e teve que passar por tratamento. Muitas vezes, tinha o sentimento de menos importância, em relação ao irmão, Eduardo VIII. Seguiu carreira na Marinha Real Inglesa e formou-se em História e Economia. Quando houve a crise da sucessão ao trono inglês e ficou sabendo que se tornava rei, caiu em prantos. Mas o grande desafio estava por vir.
Bombardeiros alemães lançam suas bombas sobre a Inglaterra...
...e fazem suas vitimas: ruinas proximas a Catedral de St. Paul.
                Sob a perspectiva do Lebensraum (“espaço-vital”), em quase dois anos de guerra, Hitler avança sobre os países nórdicos e invade uma das principais democracias liberais: a França, em maio de 1940. Com isso, o próximo alvo torna-se a Inglaterra. Tecnicamente, esses países já estão em guerra desde 3 de setembro de 1939, mas os ataques nazistas (conhecidos como blitzkrieg) tem inicio em 1940. Apostando nos ataques aéreos ofensivos da poderosa Luftwaffe (a força aérea alemã), Hitler espera dobrar a Inglaterra em poucos meses (ou até mesmo dias!) e assim realizar uma invasão anfíbia. Tinha inicio a operação Adlertag (vôo da Aguia, em alemão). É interessante observar que Hitler tinha um grande apreço pela monarquia inglesa, fato esse que fica marcado em suas declarações sobre a rainha Lady Elizabeth Boyles-Lyon, que a considerava “a mulher mais perigosa da Europa”. "Se Churchill é o homem que tenho que mais temer, então é ela a mulher que tenho que mais temer", diz o Fuhrer da Alemanha Nazista.
Ingleses se protegem dos bombardeios alemães nos tuneis do metro.
                É nesses momentos, que diante de um inimigo superior em forças, deve-se evocar o espirito nacional de união, na luta contra o invasor. A inglaterra deveria resistir, afinal, era a ultima esperança de se pensar em uma Europa livre do nazismo. Deveria surgir uma voz que dissesse o como fazer, que realmente guie o povo. Mas como pensar isso com um rei gago, timido, com problemas emocionais desde criança, afetado por doenças, eclipsado por seu primeiro-ministro Churchill (que teve um papel preponderante na guerra e vale um artigo só para ele) e ainda mais, seu maior inimigo seria um fascinante orador, que conseguiu convencer grande parte da nação alemã a ir a uma nova guerra mundial: Adolf Hitler? Era necessário superação e determinação para George VI.
                O rei buscou tratamento com uma espécie de “terapeuta de voz”, chamado Lionel Logue. George VI passou por tratamento nas décadas de 30 e 40, e Logue sempre o acompanhou nos discursos oficiais e principalmente, nas declarações envolvendo assuntos da Segunda Guerra Mundial.
Com isso, o rei ganhou simpatia nacional. Converteu-se em um rei extremamente popular, sobretudo por sua dignidade com seus súditos, permanecendo em Londres sob bombardeios alemães, visitando as frentes de guerra para elevar a moral das tropas, e trazendo os Estados Unidos para envolver-se com o lado dos aliados contra os nazistas. Se naquele momento, Churchill era a ação, o rei George VI passou a ser a voz que passava a confiança ao povo inglês para vencer o inimigo nazista. Suas atitudes foram uma das marcas de uma das mais emblemáticas resistências da História.
A cultura triunfa sobre a guerra? Mesmo com os bombardeios, os ingleses vão a biblioteca. 
Entregador de leite faz seu oficio entre as ruinas de Londres.
          Com determinação, o povo inglês resistiu até o auxilio e a definitiva entrada dos EUA na guerra, em 1941, quando o conflito mundial começa a mudar de rumo.  A batalha da Inglaterra resultou, só em 15 de agosto de 1940, em 34 caças ingleses abatidos e cinco aeroportos bombardeados, mas 76 bombardeiros alemães foram perdidos. As cidades inglesas, inclusive a capital Londres, foram bombardeadas por alguns meses, com algumas pausas, até intensificar-se novamente em junho de 1944, com o lançamento das armas V1 (Vergeltungswaffen – Arma de Represália), sendo lançados mais de 8 mil bombas, danificando 75 mil casas em Londres, e matando quase 7 mil mortos. Em setembro de 1944 foi a vez das armas V2, sendo lançadas mais de 1357 misseis, que mataram mais de 6 mil pessoas. Até o Palácio de Buckingham (residência da família real inglesa), foi atingido por esses mísseis.
George VI e a rainha Lady Elizabeth Boyles-Lyon diante das ruinas ocasionadas por bombardeio no Palacio de Buckingham.
A Força aérea inglesa (RAF) foi decisiva na Batalha da Inglaterra. Na foto, o brasileiro Pierre Clostermann, que combateu nos fronts ingles e frances, com suas conquistas desenhadas em cruz.
Os lendários Spitfires, um dos melhores caças da 2 guerra.
Misseis alemães V1 prontos para lançamento. As armas V1 e V2 são os precursores dos misseis intercontinentais.
 A determinação do povo e das forças armadas inglesas em todas as frentes que atuou, contribuiu diretamente para o enfraquecimento das forças armadas alemãs, que somado a desastrosa operação Barbarossa (invasão alemã a URSS), só contribuiu para o maior pesadelo de Hitler: uma batalha de duas frentes (EUA e Inglaterra de um lado e URSS do outro).
                Isso demandou muita energia e determinação de George VI. Estressado, mergulhado no vicio do fumo (que por muitos anos, foi recomendado por médicos ao rei, alegando que fumar relaxa as cordas vocais) e com um câncer de pulmão, o rei viu uma Inglaterra arruinada, o império perder muitas colônias, tornando-se independentes e sua filha, Elizabeth, cada vez mais assumindo suas funções e o representando em eventos públicos e diplomáticos. George VI vêm a falecer em 1952 e Logue, seu terapeuta, no ano seguinte. Elizabeth foi coroada rainha em 1953, sob o titulo de Elizabeth II. Sua história foi registrada no cinema sob o titulo “O Discurso do Rei” de 2011. (Do qual recomendo!)
                Em resumo, existem momentos em que muitas vezes, não é a força bruta que define os rumos de uma guerra, mas ações de superação, determinação, atitudes que fazem a diferença. George VI representou um pouco desse ideal: de rei tímido a um excepcional ícone do espírito inglês, que teve de superar suas próprias dificuldades para conduzir a vitoria contra um inimigo muito superior. As vezes, torna-se necessário superar as nossas dificuldades para que possamos auxiliar os demais a superar as suas. Superando a gagueira, George VI demonstrou que outros desafios poderiam também ser superados, inclusive, derrotar um inimigo como Hitler.  Enfim, as palavras triunfaram sobre a guerra.
Familia real britânica se apresenta aos suditos na praça Trafalgar: da esq a dir, Lady Elizabeth Boyles-Lyon (de chapeu branco), rei George VI e a princesa Elizabeth (futura Elizabeth II)
Catedral St. Paul iluminada nas comemorações do dia da vitória.
Ingleses festejam o dia da vitoria (VE-DAY).


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